Depoimentos de quem já participou

Grupo Beija Flor


Entrega de lanche de rua no centro da cidade de São Paulo - 25/08/2003

História da Mineira

Domingo, 24 de agosto de 2003, chegamos a região da baixada do Glicério por volta de 22horas. 

Era o 4º domingo do mês, data em que geralmente o nosso grupo sai as ruas do centro de São Paulo para o trabalho de entrega de lanches para os mais desfavorecidos. 

Vestimos-nos de beija-flor, como gosta de realçar meu amigo Eduardo, constantemente entusiasmado com a parábola do Beija-Flor.

Ao chegar a um dos vários cantos escuros que enxameiam debaixo do complexo de viadutos do Glicério, paramos tendo ao lado duas pequenas ruas a nossa direita. 

Logo que descemos dos carros a maior parte das pessoas se dirigiu para o tenebroso vão do viaduto, onde estávamos podíamos ver uma fogueira rodeada de rostos mal vislumbrados. 

Outras três pessoas se dirigiram a duas pequenas ruas a procura de alguém. 

No mês anterior em que paramos lá, uma moça do nosso grupo, a Gisele, havia conversado com uma moradora dessas ruas que lhe contara sobre uma senhora que cuidava de um bebê e de várias outras crianças, pedindo-lhe algum tipo de ajuda. 

Logo a Gisele encontrou a pessoa com que conversara - uma indelicadeza imperdoável, mas confessamos não lembrar o nome correto delas.

São duas ruas ladeadas com casas geminadas bem simples e pequenas, se praticarmos um olhar maldoso chamaríamos de um cortiço. 

Entramos na rua mais a esquerda e logo paramos na primeira casa, n. 69. 

Nós estávamos acompanhados da moça que nos contara sobre a Mineira, ela logo nos precedeu e começou a chamar a Mineira pela janela, usava toda a sua potência da sua retumbante voz.

- Mineira, Mineiraaaaa, é o pessoal do lanche, oh, Mineiraaaa.

Depois de alguns segundos e alguns murmúrios que não pudemos compreender ela se virou para nós e traduziu: 

- Ela estava dormindo, mas agora tá vindo, ela tá vindo, já vai abrir a porta.

Esperamos os 4 parados em frente a porta, a única janela ficava bem ao lado, meio quebrada, amarrada. 

Em um minuto a porta abriu e a Mineira apareceu.

Uma mulher distinta, apesar dos trajes simples, sua voz ressoava em um tom baixo, discreto, mas transmitia confiança.

Nós nos apresentamos e a moça que nos guiara até lá logo se desinteressou e nos deixou a sós com a Mineira. 

A Gisele tomou a frente e vou tirando o que trouxera para ela na sacola, enquanto a Graciane e eu observávamos. 

Eram objetos para crianças e algumas roupinhas variadas, pouca coisa. 

- A senhora estava no hospital com seu bebê quando viemos aqui no mês passado, a sua amiga me contou e pediu se podíamos trazer alguma coisa para ele. 

- A senhora já está melhor?, pergunto.

- Não era eu que estava doente, era o bebê. 

Procurando me refazer da pergunta errada, pergunto do bebê.

- Ele ficou lá, internado, o médico disse que pode ser bronquite ou pneumonia. Vão fazer mais exames. Mas ele não é meu, não.

- Ah, o bebê não é filho da senhora?

- Não, é filho de uma mulher aqui da rua que eu conheço faz tempo. A mãe dele foi presa e eu fiquei cuidando dele. Pegaram ela roubando. 

- Quantos anos o bebê tem?

- Dois anos. Mas a assistente social não quer me devolver ele.

- Como assim?

- É que ele não é meu filho, a mãe está presa, eu tava cuidando, mas como não é meu filho a assistente social não quer me devolver.

- E o que vai acontecer a ele, a Gisele pergunta.

- Provavelmente vai ser encaminhado ao orfanato. 

Nós três respondemos com um "ahhhh" supermurcho, um tanto quanto decepcionados.

- Mas da senhora mesmo, quantos filhos a senhora tem? pergunto, tentando retomar o fio da conversa.

- Meu mesmo tenho cinco, a primeira tá sumida, aqui em casa cuido de sete.

- Como assim? A senhora cuida de quatro filhos seus aqui e ainda outros.

- É. Eu tenho o meu menor que tem dois anos, outros três mais velhos, dois sobrinhos e uma menina de quinze anos filha de uma amiga minha de infância que está presa. 

- Quer dizer que a sua filha de quinze anos está sumida, mas a senhora cuida de outra menina de quinze anos.

- É, a minha mais velha sumiu faz um ano. Fugiu com o namorado, de lá para cá não deu mais notícia, tentei colocar a foto dela no Fantástico, falei por aí, mas nada, nenhuma notícia. 

- Mais dia menos dia ela aparece.  

Tentei uma intervenção interessante frente ao tom desanimado que dominou a sua voz, mas acho que me saí meio patético. 

Prossegui.

- E os outros, estão todos na escola?

- Todos, menos a menina de quinze anos, essa não quer saber de estudar não.

- Que bom que eles estão na escola! Estudar é importante.

- É, de manhã eles vão para a escola e a tarde ficam no (...), um projeto da prefeitura aqui perto, pelo menos não ficam na rua.

- Só a de quinze anos que não saber de estudar. Ela chegou aqui semana passada, pediu para dormir três noites e foi ficando, daí, foi ficando, conheço a mãe dela desde que nós éramos meninas, a mãe foi presa.

Conversamos todo o tempo no sopé da porta, de dentro só víamos um varal com várias roupas penduradas, secando. 

- À noite, quando todos estão aqui, eu saio para catar papelão, latinha, é disso que eu vivo, é disso que tiro dinheiro. 

- A senhora sai catando aqui pelo centro (centro da cidade de São Paulo) mesmo?

- É, o papelão tá 0,27centavos o quilo. 

- A latinha soube que estão pagando por volta de R$ 3,00 o quilo. (um quilo equivale a aproximadamente 60 latinhas).

- Quando está quente eles pagam um pouco mais, quando esfria diminui. 

Precisa de alguma coisa ?

Minha conta de água está cortada, não paguei a conta, eles cortaram, ta ligada, mas fiz ligação clandestina. Vou tentar ver se eles parcelam para pagar a conta.

- A senhora precisa ir na SABESP, eles parcelam sim, comenta uma das meninas.

Ainda comentamos um pouco mais sobre o cotidiano da Mineira, a Gisele promete que voltaríamos trazendo  outras coisas assim que possível. 

Nós começamos a nos despedir, todos damos a mão para ela, cumprimento formal, ela nos agradece e confirma que podemos sempre aparecer, "eu tô sempre por aqui".

Saímos e nos dirigimos para o carro. Ao entrarmos no carro em que estava e contar a história para o Edu e o Paulo lembro do que conversamos no Centro Espírita Auta de Souza nessa mesma noite, antes de sairmos para a rua. 

Edu comentara que gostaria de conseguir dar outra alcance a esse trabalho, que não apenas déssemos os lanches, virássemos as costas e fossemos embora.

Levantou a possibilidade de pelo menos perguntarmos o nome das pessoas, conversarmos um pouco. 

Eu havia um lhe passado um email com uma reportagem anexa sobre o trabalho de associações de moradores que unidos e organizados conseguiram juntar dinheiro para comprar um terreno, dividiram-no entre si e construíram casa para todos. 

Isso foi feito por eles próprios, sem nenhuma ou quase nenhuma ajuda do governo, trabalho comunitário, ajuda mútua, as pessoas unindo-se e procurando melhor de uma forma coletiva. 

Ele levantou a questão no Centro Auta de Souza enquanto conversávamos antes de sairmos, respondera que também gostaria de realizar um trabalho que tivesse um alcance maior que o assistencialista, mas que na prática é difícil, complicado, articular uma forma e implementar uma maneira dessas maneiras melhorarem da sua condição socioeconômica. 

A conversa rendeu ainda alguns apartes e concluímos com uma oração colocando-nos a disposição do "Plano Maior", se fosse do interesse de Deus nos direcionar de alguma forma para esse lado procuraríamos estar receptivos, como sublinhou o Sérgio. 

O carro avançava para a Praça da Sé enquanto eu relatava a história da Mineira e traçava um paralelo entre aquela nossa conversa e a conversa que tivéramos com a Mineira, concluindo pelas "linhas tortas" que Deus escolhe para nós guiar. 

Colocamo-nos abertos para uma nova experiência social para nós, espero que consigamos aprender um pouco mais tarde e ao mesmo tempo dinamizar positivamente a vida daqueles que encontramos.

abraços

Maurício

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