Depoimentos de quem já participou

Grupo Beija Flor


Como tudo começou.

Aproximadamente sete ou oito anos atrás, assistia a um comercial na televisão onde um garoto pedia dinheiro para o motorista de um carro parado no semáforo.

Com a aproximação do garoto, o condutor do veiculo foi fechando o vidro e a imagem do garoto ficou apenas refletida.

Deitado no sofá, eu virei para minha mãe e disse:

- Precisamos fazer algo pelas crianças. 

Achei até engraçado, porque durante o comentário, eu me imaginava fazendo um monte de coisas para as crianças, mas fazer o que? 

Nem muita paciência com os meus sobrinhos eu tinha! Na época, apenas trabalhava, estudava e saia aos finais de semana para dançar, era só nisso que pensava.

Após uma ou duas semanas, não me lembro, havia um feriado na quarta-feira e eu tinha alguns dias em haver no trabalho, então emendei a quinta e a sexta-feira.

Nessa época, além do meu trabalho regular, desenvolvia sistemas de computador à noite e nos finais de semana. Era um hobby, sempre adorei mexer em computadores, mas também uma segunda atividade profissional, pois tinha alguns clientes onde implantava os sistemas que desenvolvia. 

Um dos clientes (na realidade nunca tive clientes e sim amigos) onde eu prestava serviço teve problemas com um de seus relatórios na véspera do feriado e foram obrigados a me chamar.

Estava tranqüilo, tinha o feriado todo para arrumar tudo.

Na quinta-feira pela manha, chegando ao local, na zona sul de São Paulo, comecei a procurar o motivo que ocasionou o problema. 

Procurei exaustivamente descobrir o problema, mas não obtive nenhum sucesso. Junto comigo estava Regina, uma funcionária que sempre me acompanhava no desenvolvimento do sistema.

Conversávamos sobre o que eu havia visto na televisão, sobre o quanto aquilo tocara muito o meu coração, enfim, sobre as crianças em geral.

Sexta-feira eu retornei para continuar minha busca da solução do problema. Estacionei meu carro em frente ao portão principal. 

Cerca de três horas depois, chegou um caminhão para descarregar e começaram a procurar quem era o dono do carro parado na porta impedindo a entrada do caminhão.


Nesse ínterim, Regina foi chamada para verificar se sabia de quem era o carro. 

Quando ela chegou a portão, encontrou-se com Magali (que no futuro acabaria se tornando uma grande amiga) que estava lá naquele momento, para buscar uma doação de doces para uma festa em uma casa de crianças que têm deficiência física e mental. 

Quando Regina retorna para a sala, disse-me duas coisas:

- Você precisa tirar seu carro da frente do portão e já sei a solução para o seu problema.
Quando desci, Regina me apresentou a Magali. 

Ela foi logo falando sobre a festa que estava programando fazer para as crianças. Sua alegria era enorme, mas, na hora, confesso que pensei:

- Xiii! Acho que ela vai querer me pedir dinheiro. 

Tentei desconversar o assunto. Peguei o número do seu telefone, nem quis dar o meu para não me envolver muito, prometi ligar em breve.

Após meu retorno para a sala, experimentei rodar o sistema do computador novamente e, para meu espanto, tudo voltou ao normal sem nenhuma explicação. 

Hoje, escrevendo esta historia percebo o que aconteceu - era apenas mais um encontro de amigos, aqueles encontros que só vamos entender muito depois.

Após alguns dias, pedi para minha irmã telefonar e saber mais sobre a Magali. 

Eu, heim, já imaginou se ela fosse uma daquelas pessoas que não param de nos ligar para pedir dinheiro, eu queria era distancia - pensava.

Qual não foi minha surpresa quando a Magali não me pediu dinheiro e sim ajuda para o trabalho. 

Achei ate louvável a sua solicitação e resolvi ir ajudá-la nessa festa, afinal seria apenas uma única vez, que mal poderia fazer? Resolvi arriscar. Mal sabia eu do futuro que me aguardava. 

No final de semana, antes da festa, ainda desconfiado, fui visitar o local com minha irmã e uma amiga. Como lá as crianças são muito carentes, ficavam me pegando, queriam carinho, me senti desconfortável.

Avisei a Magali: 

- Se elas ficarem em cima de mim ou me pegando, eu vou embora.

Por favor, peço-lhes, não riam, é a pura verdade.

Nunca havia feito um trabalho desses. Durante o nosso percurso até lá, Magali passara-me muitas recomendações, ela estava muito preocupada comigo. Eu era um "molecão", não que tenha mudado muito, mas ela preocupava-se em me alertar qual cenário eu iria encontrar.

Chegando ao local, resolvi ficar ao lado do João, um dos voluntários que participou da festa.

 Em questão de minutos, lá estava eu ajudando o João a carregar um aqui, outro ali, brincando, conversando, cheguei até a jogar basquete com algumas crianças. 

Dei doce na boca deles, conversei, cantei, enfim, me senti bem à vontade. 

Precisava mostrar para Magali que estava tudo bem, fui lá e não voltaria atrás. Em uma hora dessas, quando nos comprometemos, um voluntário faz muito falta. A festa era em local aberto e o dia estava bem ensolarado. 

Era época de Festa Junina. No dia seguinte, em contato com a Andréia, uma amiga que ministrava aulas em uma grande faculdade de São Paulo, contei a ela sobre a minha experiência com relação à festa. 

Como nunca fui de ficar muito quieto, contava sobre a minha alegria, afinal era a primeira vez em que experimentava a sensação de ser "voluntário por algumas horas". 

Interessada, ela me contou que estava realizando na faculdade uma grande festa junina e que para a entrada das pessoas pedia 1 kg de alimento não perecível. 

Logo se ofereceu para, se eu quisesse, nos ajudar na doação de um pouco de alimento para esta entidade.

Cerca de quinze minutos após nossa conversa, quem me liga? Magali. 

- Eduardo, você lembra da casa que fizemos a festinha, pois é, eles estão necessitando muito de comida, estou desesperada, o que podemos fazer? 

Contei a Magali sobre minha conversa com a Andréia e resolvi apresentá-las. Nessa época, Magali tinha muito mais facilidade do que eu para conversar sobre o assunto, então resolvi juntar o útil ao agradável e as apresentei.

Andréia era professora da Márcia, a qual, por sua vez, trabalhava em uma empresa que vendia feijões enlatados e que, ao saber da festa, interessara-se em fazer uma doação. 

Nós ainda não sabíamos, mas a doação seria feita da seguinte maneira: uma parte estava com a data de validade vencida em uma semana, embora boa para o consumo, e a outra metade estava dentro do prazo de validade.

Na sexta-feira da mesma semana, Magali ligou-me e disse:
- Adivinhe quanto conseguimos em alimentos: 15 TONELADAS em latas de 200gr. 

Na hora, meus olhos começaram a lagrimejar. Não sabia nem quanto era quinze toneladas, qual o volume disso? Um caminhão, dois, não sabia. 

Dez minutos depois, eu não conseguia me conter de tanta felicidade.

Até então não sabíamos das latas vencidas. Fizemos inúmeras doações e o feijão não acabava. 

Eu me considerava o rei do feijão, era feijão para tudo o que era lado. Na hora, eu nem pude me "deliciar" com a notícia, o que eu mais queria era distribuí-los, pois alguém poderia estar passando necessidade.

Uma semana após a distribuição geral deste alimento, recebi uma ligação de um dos locais dizendo que da remessa que receberam, uma grande parte estava vencida. 

Já imaginaram, logo estava recebendo uma ligação da Magali.

- Estamos em apuros, seis toneladas estão vencidas e se, por algum acaso, uma das instituições receber uma visita de inspeção, poderá ate fechar. 

Na hora não me mexia, não sabia o que fazer, parecia que tudo havia sido tão fácil. O que fazer? 

Quem primeiro me veio à mente foi Deus. E agora o que faço? Na época não tínhamos dinheiro e nem amigos para carregar tudo de volta, afinal para onde iríamos levar?

Nesse meio tempo, chegamos até a mandar fazer um teste em um laboratório e o resultado confirmava que as latas de feijão com a data de validade vencida estavam perfeitas para o consumo. 

Vários adultos experimentaram e todos estavam bem, mas quem iria se arriscar?
Sábado pela manhã fomos até a entidade, conversamos com as pessoas responsáveis pelo almoxarifado e começamos a pensar. Não havia solução. Era sábado, onze e meia da manhã, não sabíamos o que fazer.

Após várias ligações sem efeito, pois não tínhamos idéia nem para onde ligar, dado a nossa falta de conhecimento, resolvemos ir ate o portão da instituição para conversarmos mais a sós.

Quando olhamos para um dos lados, vimos um caminhão de lixo passar e tivemos a idéia de chegar até eles e pedir para levarem as latas vencidas. 

Comecei a correr, mas foi inútil, pois ele estava muito longe. Não sabíamos se riamos ou se chorávamos.

Ao retornar ao portão, viramos para o outro lado e vimos um outro caminhão de lixo parado.

Saímos correndo, gritando, ele era a nossa salvação. 

Não sei como não fui atropelado, pois a única coisa que via era o caminhão.

Após uma breve conversa e contando tudo o que havia acontecido, o motorista prometeu voltar em duas horas com alguns ajudantes. Ufa, que sufoco! Conseguimos respirar um pouco mais aliviados.

Após duas horas que para mim pareceram uma eternidade, chegou o caminhão e conseguimos dar um fim para as latas vencidas. A instituição ainda ficou com três toneladas para eles.

Ao final, demos uma gorjeta para os carregadores e perguntei ao motorista:

- Por que o senhor estava parado ali naquele momento e naquele local? 

Eu havia ficado intrigado.

- Não sei, me deu de repente uma canseira e resolvi parar um pouco para descansar, mas já está tudo bem. Por que? 

- Por nada, por nada.

Olhei para o céu e agradeci ao nosso Pai maior e a todos que nos ajudaram naquele momento. Quando o desejo de fazer algo pelo próximo brota de nosso coração, o auxílio aparece.

Pode parecer meio pitoresco, mas foi assim que iniciei minha jornada nos trabalhos sociais.

Apertos, correrias, agruras, mas aprendendo e agradecendo pela ajuda que sempre recebo, inclusive de vocês, lendo agora este texto.

Eduardo
Texto retirado do livro Solidariedade 

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