Depoimentos de quem já participou

Grupo Beija Flor


História da Mineira - continuação (14/09/2003)

Ensinando o Mau a jogar mau-mau

Nas duas semanas que se passaram entre a visita anterior à casa da Mineira e a de 14 de setembro, foram trocados muitos e-mails sobre o caso dela, principalmente relativos a conta de água.

Otávio, amigo advogado do Rio de Janeiro, prontificou-se a nos ajudar, levantando jurisprudência que nos permitisse argumentar que pessoas carentes, sem condições econômicas para o pagamento da conta de água, ou seja, contas vencidas e não quitadas contra a vontade do usuário de tais serviços públicos, tais cidadãos, nesses casos, não poderiam ter seu fornecimento de água cortado pela prestadora de tais serviços, em nosso caso, a Sabesp. No primeiro momento a sua busca nos entristeceu ao encontrar decisão desfavorável para caso semelhante em Minas Gerais, embora em primeira instância, o caso ainda aguarda julgamento de recurso. Mesmo assim ele considerou que podemos entrar com uma petição pedindo o religamento da água.

Vislumbramos uma esperança maior ao entrar em cena Paulo, nosso novo amigo advogado de São Paulo. Ele conseguiu que o escritório de advocacia em que trabalha se interessasse pelo caso e o liberasse para nos ajudar, encarregando-se do caso e dos procedimentos burocráticos necessários para a petição. Combinamos de levá-lo dia 21 de setembro para conhecer a Mineira e explicar a ela o que pretendemos fazer, conseguindo a anuência dela.

Importante recordarmos que a questão tornara-se mais complexa ao descobrirmos, o que descrevemos no relato anterior, que a conta da água não fora paga somente pela falta de recursos da Mineira, mas também porque dois de seus vizinhos de corredor estavam se utilizando da sua ligação de água para fins próprios, embora se recusem a contribuir para o pagamento do débito junto a Sabesp.  Lembremos que se a questão fosse apenas da conta em atraso especificadamente da Mineira poderíamos ajudá-la saldando o débito, mas o problema reapareceria por causa dos seus vizinhos, a fatura da água continuaria a vir com valores altos por estar servindo 3 casas e ela logo não teria como pagar novamente, ou seja, um círculo vicioso.

Nessa situação colocada há dois caminhos: a) pleitearmos junto a Sabesp que coloque relógios separados para aferição do consumo de água para cada uma das pequenas casas conjugadas; b)  conseguir na justiça que não seja feito corte no fornecimento de água a usuários impossibilitados de pagar pelo serviço; a água, como elemento básico de sobrevivência a qualquer ser humano não pode ter o seu acesso negado aos inadimplentes contra a vontade.

Domingo, 14 de setembro, Eduardo e Paulo não podiam ir à casa dela por motivos particulares, Gisele e eu resolvemos que iríamos até ela para que não pensasse que a havíamos esquecido, e aproveitamos para levar alguns produtos de limpeza que Gisele levantara.

Como dessa vez não nos encontramos no Centro Espírita Auta de Souza, como de costume, e estávamos somente os dois, estacionamos o carro em frente ao Corpo de Bombeiros do Glicério. Organizamos os pacotes com os materiais que trazíamos, e oramos pedindo a proteção dos nossos amigos espirituais durante a visita e que nossa ação servisse para o aprendizado de todos os envolvidos, mesmo que equivalesse “apenas” à gota de água no bico do beija-flor durante o incêndio na floresta.

Ao chegarmos à casa dela, por volta de nove e meia da noite, mais uma vez ela não estava, fora lavar roupa na casa de sua amiga na rua de cima. Quando bati na janela de sua casa dois meninos logo apareceram no parapeito:

        Oi, tia! Oi, Tia!

        A Mineira não tá, foi lavar roupa lá em  cima, na rua de cima.

 

Resumirei daqui por diante a maior parte dos diálogos, pois ficamos lá por mais de uma hora.

– Tia, lembra de nós? Eu sou o Alexandre, ele é o Alex, meu irmão.

– É, eu sou o Alex.

Mais tarde viemos a saber que o Alex, que apresenta uma pronúncia falha e problemas de dicção, foi atropelado aos 2 anos de idade, ficou hospitalizado 2 meses e, segundo nos contou a Mineira, teve o “cérebro inchado”.

Alexandre tem 6 anos e o Alex 5, são filhos da amiga dela que está presa, na semana anterior a mãe dos meninos enviara dinheiro para que a Mineira os levasse a visitá-la, havia um bom tempo que a amiga não via os filhos.

Novamente a mesma adolescente de 14 anos, filha de outra amiga que está presa e a qual já nos referimos no relato anterior, foi chamar a Mineira, nos entretivemos brincando com os 2 irmãos na janela, eles cheios de perguntas e beijos na Gisele.

Após alguma espera ela apareceu com um carrinho de feira cheio de roupa. Entramos na sua casa, os meninos em festa brigavam entre si para nos ajudarem a carregar as sacolas.

Abrimos um grande pacote de biscoito maisena que fez a alegria de todos. O filho caçula da Mineira e a sua terceira filha estavam na cama, esta com catapora. Naturalmente, sem que houvéssemos combinado nada, iniciamos uma confraternização de uma hora com aquela família ampliada.

Gisele levou biscoito para os dois acamados, conversou com eles na cama por longo tempo. A menina doente tirou o polegar da boca, hábito constante, conversou, levantou, junto com o irmão mostraram o gato “vira-latas” que apareceu na casa. Ao mesmo tempo Alex, Alexandre e a segunda filha da Mineira, de 9 anos, brincavam comigo enquanto comiam o biscoito.

Pouco depois, quando a menina de 9 anos também foi brincar com a Gisele e os 2 irmãos rodeavam-me pedindo atenção, entrou Sidnei, o segundo filho dela, de 12 anos. Ele viera buscar copos para tomar refrigerante com alguns amigos na rua. Aproveitando a ocasião e fazendo coro a muitas mães de filhos adolescentes, a Mineira reclamou de Sidnei:

– Não sei o que fazer. Bater, não adianta, conversar, não adianta mais, conversei um monte de vezes, os professores do colégio já me chamaram para falar dele, ele não quer saber de nada, só de rua, andar com os amigos por aí. Não gosta de estudar, não gosta de ler, só de ficar por aí, de rua, no colégio me disseram que não faz nada. Não sei  mais o que fazer. A professora disse que vou ser chamada no Conselho Tutelar. O que estragou ele, eu acho, foi que depois que eu me separei do meu primeiro marido. Sidnei foi viver com ele na rua, não quis ficar comigo. Passou 1 ano na rua, isso que estragou ele. O pai desses outros menores é meu segundo marido.

Sidnei voltou logo depois, disse que ia dormir e se dirigiu para onde estavam os menores e a Gisele. Ela, que ouvira a Mineira falar dele, iniciou uma conversa solta com ele, falava de comportamento, cotidiano, drogas, amigos, sem cobranças e moralismos exacerbados. De mãos dadas desenvolveu-se um carinhoso diálogo de quase 15 minutos.

Eu, a alguns metros deles, passei por inusitada experiência. Reparara ao entrar na casa que esta estava uma bagunça. Ao sair para lavar roupa a Mineira deixara Alexandre, o de 6 anos, tomando conta dos outros 3 menores, a menina de 9 anos fora com ela. Havia pequenos sapatos e cartas de baralho espalhados por tudo.

– Tio, tio, sabe jogar baralho? Joga com a gente?

Nem esperou a minha resposta! Em um instante catou todas as cartas e as embaralhou em sua mão.

– Tio, sabe jogar mau-mau?

– Não.

– Vamos jogar tio, eu te ensino.

– Eu também, completou Alex, o de 5 anos.

Puxei uma cadeira para junto deles e ri. Já ouvira falar dessa modalidade de jogo de cartas, mas achava engraçado um jogo com o nome do meu apelido, ou mais ainda, que tal me encontrar recebendo lições de dois meninos de 5 e 6 anos que fui procurar ajuda. Ao final de nossa visita confesso que ainda não aprendi a jogar mau-mau.

Paralelamente ao nosso jogo de cartas, Mineira contou que a filha mais velha, de 15 anos, que estava sumida, reaparecera:

– Ela está grávida de 4 meses. Está morando lá em Pinheiros. Arrumou um marido, ele tem 26 anos, cata papelão também, como eu.

– Você vai ser avó, Mineira?!

– É, eu vou.

– Mas ela ainda é menina, ele disse que ela nem sabe tomar conta do quarto onde eles moram. Nem se cuidar sabe, ainda nem fez exames, eu que fui ontem no Posto de Saúde e marquei um pré-natal para ela. É menina de tudo ainda!

Mineira disse tudo isso com aquele jeito dela de ser, espontâneo, carismático e ria ao contar as peripécias da primogênita.

Gisele e eu nos olhamos, mudos, concordamos. Uma adolescente de 15 anos, grávida, é mesmo uma menina.

Fomos embora com o coração sorrindo, prometendo voltar no dia 21 de setembro, ainda curiosos com a poesia que surge quando lá estamos.

abraços

Maurício

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