Depoimentos de quem já participou

Grupo Beija Flor


História da Mineira 5

um mês depois da primeira visita

Domingo, 28 de setembro de 2003, um mês depois do nosso primeiro encontro com a Mineira. Novamente chegara o 4o domingo do mês, final de setembro, preparávamo-nos para realizar mais uma das nossas entregas regulares de lanches nas ruas do centro da cidade de São Paulo.

A semana que transcorrera desde a nossa última visita à casa de nossa mais recente amiga, D. Elizabete, a Mineira, foi agitada. Após o susto de nossos colegas ao descobrirem a sua realidade de vida, o grupo decidiu pelo levantamento real dos débitos do imóvel na Sabesp, o pagamento total desses débitos e o conseqüente pedido para a volta do fornecimento de água.

Paulo, nosso novo amigo advogado que lhes apresentamos no texto anterior, Gisele e Edu mantiveram intensa troca de e-mails e providências, quem iria realizar o pagamento, de onde sairia o dinheiro, procedimentos burocráticos, uma série de pequenos itens foram abordados e solucionados. 

Paulo conseguiu a doação de boa parte do valor em seu escritório, Fábio, outro amigo participante da troca e-mails, também colaborou financeiramente, Eduardo completou o restante através da verba através das vendas do livro Solidariedade. Pagamento feito, promessa de retorno da água para a casa dela a partir do dia 30 de setembro.

A questão do esgoto é complexa, permanecendo aberta. Sérgio nos esclareceu a questão um pouco mais ao explicar que a Sabesp leva o encanamento necessário para o serviço de esgoto a todas as ruas de São Paulo, mas a ligação do imóvel com a rede de esgoto tem que ser feita pelo proprietário deste. 

Isso esclarece em parte a razão de muitos imóveis pertencentes à população de baixa renda não terem ligação com a rede de esgoto. Não só há a questão do custo da ligação da rede hidráulica da casa com a rede de esgoto, como também o custo mensal de manutenção desse serviço é maior. 

Recente reportagem no jornal "Diário Popular" afirma que esta é a principal razão de muitas casas ainda utilizarem o sistema de fossa, entretanto, em favelas e muitos cortiços nem esse sistema existe.

Ao nos reunirmos no salão do Centro Espírita Auta de Souza nesse domingo à noite, fomos brindados pela visita de quatro crianças do Colégio Terra, do bairro da Saúde. 

Algumas crianças da 5o e 6o séries tinham um trabalho a fazer para a Feira de Ciências sobre o tema “Direitos humanos e cidadania” e procuraram o Eduardo para saber sobre seu grupo Beija-Flor. 

Ele convidou a todos a assistirem uma palestra dele. As crianças foram, tiraram fotos, apresentaram na escola e ainda venderam cinco exemplares do livro “Solidariedade” que Eduardo editara em 2002. 

Quando elas foram lhe entregar o dinheiro da venda desses livros ele lhes fez uma contra-proposta, não aceitaria o dinheiro da venda contando que eles fizessem um trabalho voluntário. 

Eles aceitaram e nesse domingo apareceram no Centro Espírita Auta de Souza com 100 lanches. As quatro crianças, duas meninas de 12 anos, Nathália e Fernanda, outro menino da mesma idade, Carlos Magno e um de 11 anos, Victor Henrique, estavam acompanhados por duas das mães e um pai.

Antes de proferirmos a prece que encerra os preparativos para a saída do grupo na rua comentei com todos os presentes sobre a intenção de dinamizarmos nossas atividades na área social. 

Voltei a realçar algo que se apresenta premente para mim, que nossas ações e nosso aprendizado sejam aprofundados através de uma maior integração com a realidade de vida das pessoas que encontramos. 

Esbocei uma fala sobre um pré-projeto que é caro para mim, o “Dialogando”. Sim, tentar dialogar com as pessoas que encontrarmos. 

Cada pessoa é uma unidade, cada pessoa é um espírito no maravilhoso universo cultural em que nos encontramos inseridos. A troca de conhecimento humano pode enriquecer muito qualquer atividade que pretenda expandir o potencial humanista cristão de cada um.

Em nossa primeira parada na rua fomos para a parte de baixo de um viaduto no final da avenida Rangel Pestana. Apresentei as crianças, ou seria melhor pré-adolescentes, para a Meire, uma moça grávida que já conhecemos de outras visitas. 

Muito solícita ela já nos contara que vive na rua há alguns anos, cata papelão e caixas de madeira diariamente, tendo até compradores certos para o material. 

O interessante é que ela e o marido tem pequena casa própria em bairro distante da cidade, mas “optaram” por “morarem” embaixo de um viaduto porque não há emprego e nem como obter renda mínima onde se localiza sua casa. Triste realidade que assombra milhões de brasileiros país afora.

Continuamos.

Ao encostarmos ao lado da casa da Mineira, desci do carro e segundos depois ela saia de sua casa e vinha ao nosso encontro. Alguns dos meus colegas distribuíam os lanches no viaduto, fui apresentando a Mineira a outros que só a conheciam pelos textos e pelas histórias que lhes contamos. Amável como sempre, abriu sua casa e fomos entrando.

Tirei da minha mochila alguns produtos de limpeza e xampus que a Carol doara, deixando-os em cima da mesa. Nossa amiga chegara pouco antes de Avaré, cidade do interior do Estado de São Paulo onde fica o presídio em que está seu marido. 

Como nos dissera antes, ela consegue visitá-lo apenas uma vez por mês por causa do preço da passagem, fôra com caçula, Sávio, de dois anos, já que pela idade este não paga passagem. 

Ao contrário das nossas visitas anteriores, talvez pelo fato de que a Mineira estivesse fora, quase todos seus filhos e agregados estava dormindo, apenas Shirley, a sua segunda filha, de 10 anos, estava acordada e o próprio Sávio, que acabara de chegar com a mãe.

Entrei com as crianças que nos acompanhavam, mostrei, com a anuência da Mineira que me deixou a vontade, as modestas condições da sua casa. No quarto ao lado da cozinha as crianças da casa dormiam, Shirley estava espevitada e abraçou Gisele assim que a viu com uma deliciosa frase que todos gostariam de ser recebidos:

– Oi, tia, você veio! – a frase foi acompanhada de um sorriso e um braço que enlaçou o pescoço da Gi.

Por sua vez, as crianças que nos acompanhavam mal falaram no tempo em que estiveram dentro da casa da Mineira. Talvez a enorme distância que opunha aquela realidade do cotidiano destas, coligada a condicionamentos culturais de classe tenha dificultado que eles alcançassem mentalmente e emocionalmente o universo daquela vida tão diferente. 

Mais tarde, já no carro e ao lado da mãe e ao meu lado, Victor, o menor, de 11 anos, comentou que a casa cheirava mal - possivelmente pelo suposto odor de xixi em algum canto - e ingenuamente nos asseverou que prendera a respiração.

Conjuntamente com Paulo e com a Gisele explicamos resumidamente a ela sobre o pagamento da água efetuado e lhe entregamos os comprovantes. Ao mesmo tempo os nossos outros colegas do grupo entravam e saiam da casa, acredito que quase todos a conheceram. 

Sorrindo e repetindo duas ou três vezes, Dª Elizabete, a Mineira, disse-nos que falou a seu marido, Adilson, sobre nós, realçou o quanto ele nos agradecia. 

Paulo anotou o nome completo do seu marido e o número do processo dizendo que conversaria com uma amiga, advogada criminalista, para tentar descobrir uma posição mais clara sobre suas tentativas de obter liberdade condicional – nosso amigo Paulo apenas reiterou não poder prometer nada a respeito. 

A Mineira ainda nos falou sobre o que seu marido aprendera a fazer na cadeia, mostrando, como exemplo, uma bolsa artesanal (muito bem trabalhada por sinal) que ele confeccionara. Despedimo-nos prometendo voltar brevemente.

Prosseguimos a rotina da entrega dos lanches. Na região da Praça da Sé dividimo-nos em dois grupos. Um deles dirigiu-se ao largo onde fica o Mosteiro São Bento. 

Dirigi-me com outro grupo de aproximadamente 6 ou 7 pessoas para a Praça da Sé propriamente dita. Passamos por todos os cantos da praça e arredores, crianças e adolescentes, mulheres e velhos apresentaram-se para receberem nossos saquinhos de lanches. Mais de uma vez ouvimos:

– Obrigado, estava com uma fome! Deus lhe pague, meu filho, Deus lhe pague.

Constantemente nos colocamos frente a subjetiva questão do “dá mais um”.

– Dá mais um, tia, tô com fome.

– Tio, pode dar mais um para minha mulher que tá na outra rua?

– Posso pegar mais um para comer amanhã de manhã?

Questão extremamente subjetiva, não há afirmativa que encerre o que é correto fazer, como lhes digo, não há certo ou errado, essa decisão costumo deixar àquele que recebe a pergunta. 

A decisão de repetir o lanche sempre aperta o coração de quem opta pelo “sim” ao final do trabalho da noite, quando não tendo mais nenhum lanche encontramos pessoas em precárias condições e lembramos dos lanches repetidos. 

Decisão ainda mais difícil se pensarmos que se estivéssemos em nossas casas provavelmente comeríamos dois ou mais lanches.

Ao voltarmos da Praça da Sé em direção aos carros encontramos na rua Boa Vista uma moça, Eliana, uma senhora de meia-idade e uma menina de nove anos, Aparecida. 

Eliana empurrava um carrinho de bebê com uma linda criança de cinco meses. 

Sem percebermos como, em pouco tempo instaurou-se um diálogo franco entre esse pequeno grupo e o nosso grupo.

– Não, ela não é minha filha!

– Onde está a mãe? – perguntei-lhe então.

– A mãe – Eliana responde com uma interjeição crítica, mostrando na face a sua reprovação.

– A mãe está por aí, fica lá na Sé, ela não tá muito aí não para filha. Nós temos amor, nós cuidamos. O nome dela é Kathlyn.

Lembrei-me então do exemplo das amas-de-leite, inclusive do maravilhoso exemplo das “mães-pretas” que cuidavam dos filhos alheios. Da mesma maneira que a Mineira, essa moça também agregou “pessoas alheias” à sua família através da expansão do amor. 

Ela nos contou que muitas vezes dorme na Praça da Sé, nos buracos do metrô, mas que moram mesmo em um imóvel invadido na Baixada do Glicério, ali perto. 

Pediu-nos uma cesta básica e roupas, prometemos tentar conseguir tanto uma cesta básica como leite ninho para o bebê. Paulo anotou seu endereço e lhe disse que iríamos procurá-la.

Paulo pediu permissão à Eliana para pegar Kathlyn no colo. Eliane permitiu e ele fitou-a com imensa ternura. 

Em seguida todos do grupo se aproximaram pra ouvir o papo que se desenrolava e apreciar a beleza da menina que sorria.

Quando íamos nos retirar, depois de quase todos fazermos alguma brincadeira com a linda menina no carrinho, a outra menina, Aparecida, de nove anos, pediu com graça:

– Tia, vê se tem alguma roupa para mim, alguma roupa assim para o meu jeito – falou, sorriu e perfilou-se como querendo mostrar-se melhor a nós.

Depois de nos despedirmos, continuando caminhando para os carros, comentamos:

– Os “amigos lá de cima” parece que colocam as pessoas na nossa frente, continuemos então.

abraços

Maurício

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