Depoimentos de quem já participou

Grupo Beija Flor


História da Mineira 7

- 12 de outubro, dia das crianças –

- não tem nada pior do que ver criança sem ganhar presente!!!

  A semana foi atribulada, desde que tivemos a idéia de organizar uma confraternização mais alegre com a família da Mineira através de uma pequena e simbólica festinha no “dia das crianças”, nos vimos obrigados a reunir pessoas e materiais para o, digamos, evento.

Paralelamente a isso, acompanhamos os procedimentos necessários para a realização da gentileza a qual o senhor Roberto se predispôs. Durante a semana ele próprio e funcionários da sua firma, Grua, estiveram algumas vezes na casa da Mineira e do Adilson. Verificaram no local o que seria preciso fazer para a ligação da rede de esgoto pública com a casa deles, foram na Sabesp para se informarem dos trâmites burocráticos e técnicos indispensáveis, e compraram os materiais inicialmente necessários para essa obra. Um eletricista deverá visitá-los para verificar e melhorar a precária instalação elétrica da casa. Quando ele esteve lá, a Mineira lhe mostrou onde tomam banho, “lugar bastante precário” - segundo suas palavras - "além do que o chuveiro que existe no local não funciona porque a energia elétrica é emprestada e não agüenta, e o vizinho que empresta a energia só não a cortou por causa das crianças".

A partir da segunda-feira, seis de outubro, começamos a reunir a equipe que nos acompanharia no domingo, dia doze. Troca de e-mails de cá pra lá e de lá pra cá, até o meio da semana conseguimos a promessa do comparecimento de aproximadamente dez pessoas, sem contar os outros que não iriam pessoalmente, mas nos ajudariam com presentes e guloseimas.

Presentes, independente da condição sócio-econômica, da carência material ou não, as crianças da nossa sociedade têm mente emoções formadas por uma série de condicionamentos culturais que os fazem igualar o significado de festa ao de presentes. Bem, dado esse posto, fomos a luta.

Combinara com a Mineira para que convidasse cerca de vinte crianças, incluindo as suas, para a noite do dia doze.

Nossos amigos, Mônica e Álvaro, que haviam se interessado pela história ao ler as crônicas das visitas anteriores, ofereceram-se para nos ajudar. Surpreendentemente em poucos dias recebemos deles longa lista de brinquedos já disponíveis e embrulhados. A lista era variada, de jogos infantis os mais diversos a carrinhos, bichos de pelúcia e bolas. A inesperada quantidade de presentes ofertados por eles provocou-me o primeiro suspiro de alivio da semana, a questão dos presentes deixara-me apreensivo.

A semana foi correndo, as novas adesões ao grupo também ofereceram ajuda. Paulo Cursino, aproveitando o “dia das crianças” conseguiu grande doação de brinquedos na firma em que trabalha, sexta-feira recebi exultante e-mail dele confirmando os presentes ofertados pelos seus colegas de trabalho. O seu entusiasmo contagiou a todos de tal forma que se estendeu até nós, o que me leva a abrir o texto aqui e deixar que ele relate o episódio com suas próprias palavras:

Tudo começou na quinta-feira, nove de outubro, aqui no Panamericano onde trabalho, quando a Priscila (assistente de supervisão), teve a idéia de pedir a todos os funcionários do Call Center que trouxessem brinquedos e bichinhos de pelúcia para enfeitarem suas mesas de trabalho. Nisso, tive a idéia de sugerir a todos que, após enfeitarem suas mesas, doassem estes brinquedos para a nossa campanha. Para a minha alegre surpresa, todos sem exceção, compraram a idéia com grande entusiasmo.

No dia combinado, chegando no meu horário de trabalho, vi o nosso ambiente de trabalho repleto de brinquedinhos... todas as mesas estavam decoradas... a empresa estava cheia de bexigas brancas, azuis e rosas... Era uma alegria só!

Na hora do meu almoço, fui até uma doceira e comprei um monte de pirulitos e distribui para os funcionários... foi legal ver todos chupando pirulitos... tinham voltado a ser crianças novamente...

No final do dia, um por um veio me trazer os brinquedinhos... era de admirar o brilho nos olhos de cada um. Para muitos, era a primeira vez que participavam, mesmo que indiretamente, de um trabalho voluntário. Alguns até diziam: "que este brinquedo faça alguém feliz, pois durante muito tempo me fez feliz"... a cada palavra destas me vinha a imagem da criança que iria receber os brinquedos... ai eu dizia aos meus amigos "Com certeza, o seu brinquedo fará muita criança feliz" ...foi legal ver a satisfação dos meus colegas!

Foram tantos brinquedos doados que precisei de duas caixas grandes e três sacos de plástico grandes, além disso a minha chefe, a Renata, me deu uma ótima idéia: recolher todas as bexigas e também doar para a criançada. Foram mais cinco sacos plásticos, aqueles de lixo de... sei lá quantos litros, era enorme e couberam muitas e muitas bexigas. Não tinha como levar tudo na sexta-feira. Deixei para buscar no sábado com o meu carro.

No sábado cedo tava a maior chuva, lá fui eu a minha digníssima Lúcia buscar todos os brinquedos. Enchemos todo o carro. Quase não tinha lugar para respirar de tanto brinquedos e bexigas. Antes de ir pra casa passamos no supermercado para comprar os doces e balas. Hummm... só em lembrar me dá água na boca, escolhi todos os doces e balas que eu adorava quando pequeno imaginando que a criançada iria adorar tanto como eu adorei... Sentia-me voltando a ser criança, mas com uma grande diferença, antes tinha vontade de comer o doce e muitas vezes meus pais não podiam comprar... e hoje, graças ao meu bom Deus, foi me dada a oportunidade de oferecer os doces.

Foi uma delícia de compra: compramos bis, balas, maria-mole, suspiros... tinha o branco e o rosa, doce de leite... aquele que você faz um furinho na ponta e chupa... hummm... aposto que quem ler este texto, vai sentir a maior vontade de comer...

Continuando a minha história, ainda no sábado, chegando em casa, ao tirar todas as coisas do carro e subir para o meu apartamento, tive outra grande idéia – a princípio a Lucia não a aprovou, mas depois, com boas argumentações, ela aprovou.

– O que eu fiz?

Espalhei todos os brinquedos e bexigas pelo meu quarto, carrinhos misturados com bonequinhos, bexigas misturadas com ursinhos, bonecas barbies misturadas com chocalhos, etc, etc..., ficou a maior bagunça. Foi como se eu preparasse aquele quarto para que as criancinhas espirituais pudessem brincar – olha que eu tenho certeza que elas iam lá brincar, tanta certeza, que deixei a luz do quarto acesa durante toda a noite.

No domingo, lá fomos nós, a Lúcia e eu, reunir toda aquela "bagunça" e separar o que era de menino e o que era de menina. Advinha quem ficou responsável pela "ala" dos meninos: lógico que eu, né! Outra vez, voltei a ser criança, ops, voltei não, acho que sou sempre uma criança, às vezes mais séria, às vezes mais responsável, mas quase sempre a criança bem humorada e de bem com a vida. Resolvi separar os brinquedos em kits, imaginei exatamente o que gostaria de ganhar e separei caminhãozinho de bombeiro com bonequinho e mais um carrinho, em outro kit coloquei um helicóptero mais um bonequinho mais um carrinho, e assim foram feitos vários kits, uns quinze aproximadamente. A Lúcia fez os kits femininos usando o mesmo critério e também na mesma quantidade.

Após embrulhar todos os presentes, lá fomos nós para o Centro Auta de Souza nos reunir com os demais amigos... “pra variar”, chegamos com um pouquinho de atraso... já estavam todos reunidos.

Eu fiquei muito feliz com o que vi por lá... havia muitos outros presentes além do nosso... o primeiro pensamento que tive foi: "nessa noite faremos muitas crianças felizes". Então, organizamos tudo e lá fomos nós para a grande festa.!!!

 

Nosso querido Eduardo Chamon, apesar de não comparecer pessoalmente no domingo, desdobrou-se de tanto que procurou nos auxiliar. Visitou mais de três vezes a loja de variedades perto de seu local de trabalho. Em um dos locais, por ser conhecido como o pidão, na hora de pagar a dona do estabelecimento não aceitou seu dinheiro, recebeu tudo o que foi escolhido como doação. No domingo a noite enviou-nos uma caixa de presentes embrulhados por seu pai e sua mãe. A caixa continha desde pequenas bolas a dominó, bonecas, yo-yo e até um jogo de mágica do mr. M.!!

Ao chegar o sábado de manhã minha preocupação em relação aos presentes invertera-se, será que estávamos levando presentes demais? No mesmo dia a Gisele asseverou-me que não:

– Não tem nada pior do que ver criança sem ganhar presente!!! É melhor sobrar do que faltar, levamos como extras os outros presentes. E tem mais, o que importa são as brincadeiras, a bagunça, enfim nosso bom intuito... certo?

Sexta-feira a noite Ivete e seu marido Leonardo entregaram-me despretensiosa sacola, ao abrir vi que continha muitos pacotinhos com brinquedos tipo “cobrinha” e pequenas presilhas coloridas de cabelo para meninas e moças – eles não poderiam imaginar o sucesso que tais presilhas iriam fizeram no domingo.

– Só os presentes? Nós não vamos brincar com eles, não vamos levar nenhum docinho, um chocolate?

Tal questão começara a nos assaltar dez dias antes do “domingo das crianças”. A partir do momento em que os novos voluntários foram confirmando a disposição de ajudar passamos então a distribuir “tarefas doces” para cada um. Paulo Cursino e Lucia, sua esposa, prontificaram-se a levarem caixas de bis e sacos de balas, Fred e Patrícia também aceitaram contribuir com chocolates e balas, nossas queridas Raquel e Cecília prometeram levar pacotes de sonhos de valsa, Gisele ainda comprometeu-se com bombons ouro branco. Além dos “doces prontos”, Guará, nossa amiga que não pôde ir pessoalmente, preparou um bolo delicioso já cortado em mais de cinqüenta pedaços e Solange nos avisou que levaria cem brigadeiros da famosa receita de brigadeiros da sua mãe.

Com a volumosa colaboração relaxamos e engatilhamos a contagem regressiva. Fred e Paulo ainda haviam se oferecido a vestirem-se com roupas de palhaço para brincarem com as crianças. Ainda apreensivo com alguma possível surpresa de última hora que esfriasse o espírito de boa vontade incorporado por todos os amigos que pretendiam levar um pouco de alegria àquelas crianças, reunimo-nos no Centro Espírita Auta de Souza no domingo a noite. Um a um, todos foram chegando e colocando suas contribuições sobre a mesa do salão. Iniciou-se uma hora de intenso trabalho de organizar todas as guloseimas, as balas, bis, bombons e pirulitos foram misturados e agrupados em pequenas sacolinhas, de “aperitivo” Solange ainda serviu um pouco de brigadeiro para todos. O instinto infantil refletia nos rostos ali presentes. Os presentes foram sendo colocados em sacolas grandes conforme fossem para meninos e meninas, para crianças menores ou de embalagens pequenas. Mônica, Raquel e as outras meninas tentavam organizar a pequena bagunça dos presentes, todos embalados e etiquetados. Nesse ponto lembro-me de minha surpresa ao pegar um dos pacotes e ler na sua etiqueta: “a noiva do Chuck”. Não podia ver a cara da suposta boneca-noiva, mas uma ironia surreal subiu-me a mente ao imaginar o que poderia ser uma boneca denominada noiva do boneco-assassino dos filmes de Hollywood.

Ao meu lado alguns se transformavam. Fred tornou-se um ‘palhaço” e logo Graciane propunha que a Patrícia pintasse seu nariz com batom vermelho – ao final da noite divertíamo-nos com a sua dificuldade de tirar essa decoração facial, dessa vez Graciane propôs que ele usasse demaquilante. Paulo cedera a sua vez de “palhaço” para Lucia, tornando-se esta a “palhaça tia Lúcia”. Raquel, a fotografa oficial da expedição “adventure dia das crianças”, adornou-se com uma super-máquina fotográfica no peito e duas enormes orelhas de Minnie no alto de sua cabeça; pra ajudar ela estava de blusa vermelha, e foi aí que alguém a apelidou de Raq-Mouse.

Às nove horas da noite encostávamos os carros ao lado da casa da Mineira. Assim que desci do carro algumas meninas surgiram na porta com a Shirley, a segunda filha da Mineira, na frente. Ganhei um beijo de algumas delas e logo fui interrompido pela Shirley que incessantemente perguntava-me:

– Cadê a tia? A tia veio? Cadê a tia?

Procurava pela Gisele, por quem já criou laço afetivo com as visitas, mas essa estava em outro carro.

Desse momento em diante a hora voou. Descemos com os doces primeiro, aos poucos fomos entrando na casa dela, embora já cercados pelas crianças. Paulo, nosso amigo advogado, tentava ajudar-me a organizar um pouco a criançada – tarefa inglória. Brigadeiros, bolos e bombons eram vorazmente consumidos e repetidos. Adilson e algumas outras mães mantinham-se fora da pequena casa, já abarrotada de crianças. Alguns de nós passavam oferecendo um pouco do brigadeiro e do suspiro que ainda não havia sido devorado. Apresentava alguns dos nossos amigos a Mineira e ao Adilson, eles só os conheciam de nome, enquanto outros logo desciam os pacotes de brinquedos dos carros, dirigindo-se com eles ao fundo do quarto da Mineira para iniciarmos a distribuição.

Logo ouvi o que me pareceu ser a voz da Raquelzinha:

– Primeiro as meninas, primeiro as meninas, quem não for menina tem que esperar do lado de fora!

Entrei para espiar e ver se podia ajudar, mas sim, chegar até o local em que as nossas meninas começavam a distribuir os presentes equivalia a uma corrida de obstáculos. Na cozinha/sala tropeçávamos em inúmeros “pequenos seres”, ao chegar a uma distância de dois metros dos beliches que ficam no quarto só pude sorrir. Algo que com muito esforço e boa vontade podíamos chamar de fila formara-se. As meninas davam o nome e recebiam um presente. Mônica estava sentada na cama com a prancheta no colo, ladeada por vários outros dos nossos que tentavam ajudá-la. Lucia, Raquel, Cecília, Graciane, Patrícia e Paulo tentavam acertar os presentes com os presenteados, para cada um que se apresentava para receber um pequeno jogo diplomático era necessário. Poucos minutos depois os meninos entraram para receberem seus presentes.

Aqueles momentos da entrega dos presentes foram mágicos, se assim posso me expressar. Alguns dias depois Lúcia me disse o quanto aquilo mexeu com ela: sinto que algo mudou, a minha casa ganhou cor e vida, mantive algumas bexigas e bichinhos. Nos momentos em que me sinto sozinha ou deprimida lembro-me daquela hora com aquelas crianças, sinto a presença delas, é como se estivesse vivendo aquela emoção novamente. Lembro dos seus olhinhos, de cada criança pegando o seu brinquedo, isso me encheu de alegria e esperança. Amor... aquelas crianças tinham e doaram, que vontade de levá-las para casa e abraçá-las. Mônica, Raquel e eu selecionávamos cada presente sentindo a emoção da criança que estava a nossa frente, realmente agora sei como se sente um Papai Noel!! Foi uma emoção bem diferente da festa de fim de ano, realizada e idealizada pelo nosso amigo Eduardo Chamon. Estávamos próximos de crianças que veremos pelo menos uma vez por mês, ao menos uma parte delas. Estávamos dentro da casa delas, dentro do quarto delas distribuindo os presentes, estávamos fazendo parte da vida dessas crianças e dessa família, era como se visitássemos um amigo.

Foi uma festa!! Assim que sai um pouco na calçada em frente a casa vi alguns meninos aparecerem correndo com seus presentes para mostrarem para as mães e para os outros amigos. Logo mais outra cena chamou-me a atenção, a cinco metros da casa, nosso amigo Paulo, o advogado, montara na outra calçada um dos jogos presenteados e iniciara uma partida com cinco meninos, todos no maior entusiasmo.

Algumas das crianças olhavam os presentes recebidos com um misto de afeto e orgulho, Alexandre, nosso amiguinho de seis anos, vestira as luvas de goleiro com emblema do Corinthians que ganhara e não tirou até a hora em que fomos embora. Shisleine, com seus cinco anos, maravilhava-se com a sua boneca, levantava-a e mostrava a todos que passavam por ela. Quando mais tarde abri o pacote de presilhas as meninas cercaram-me ávidas, confesso que foge à minha compreensão o fetiche atrativo que isso desperta, só sei que fui cercado por tal quantidade de mãozinhas estendidas que não sossegaram enquanto não se certificaram que o pacote estava vazio.

A atração doce da noite foi o Sávio. Depois de um grude terrível na Gisele, consegui transferi-lo para o meu colo por alguns minutos, transferindo-o depois para a Cecília, saio de vista e ao voltar pouco depois lá está ele de novo no colo da Gisele, embora fazendo graça com todos. Cecília fazia cócegas nele ao que ele respondia com seu belo sorriso e tentativas de alcançá-la. A tietagem, digamos assim, em volta dele, prosseguiu até a hora de irmos embora.

Nesse ínterim Solange trouxe-me a nota triste da noite. Fôra até embaixo do viaduto ao lado da casa com a Mineira para pegar o nome de uma moça que está grávida e mora embaixo do viaduto e já é mãe de duas crianças, uma menina de quatro anos e um menininho de dois anos, para que posteriormente fosse levado um enxovalzinho para o neném que vai nascer, e ao voltar disse-me que ela estava extremamente perturbada e desolada, uma “vizinha” de baixo do viaduto, que também está grávida, pediu para levar sua filhinha de quatro anos para dar um passeio e sumiu com a sua filha, isso já tem três dias, seu abatimento era tal que não conseguia nem falar direito. Não conseguia dar seu nome, não conseguia conversar, depois, devagarinho, voltaram lá mais uma vez e conseguiram conversar com ela, pediu comida, levamos uns doces, pediu depois uma roupa e levamos uma calça, algumas blusas e toalhas que estavam no carro do Álvaro, mas sobre o assunto da filhinha, ela nada mais falou, parecia meio anestesiada. Rezemos por elas.

Um pouco depois, enquanto recebia outras crianças que haviam acabado de chegar – aquele número de vinte crianças fora uma quimera, percebia –, olhei ao lado e vi a Mônica e a Mineira concentradas em uma agradável prosa a dois, tal diálogo lembrou-me a idéia inicial que me levara a esse trabalho. Mais do que dar algo, realizar uma ação social que se baseasse na integração psico-social entre atores de condições sócio-culturais distintas, era o “dialogando”. A cena das duas conversando naturalmente era o retrato da nossa idéia inicial.

No dia seguinte a Mônica contou-me como foi a sua conversa com a Mineira: o nosso papo foi ótimo. Eu estava encostada na soleira da porta de entrada da casa e ela estava de pé bem ao lado na rua, perguntei-lhe quantos filhos tinha e ela foi me apontando cada um e falando um pouco sobre cada filho. Contou-me também que até pouco tempo atrás cuidava de um bebê que é filha de uma amiga que esta interna na Febem porque foi pega roubando no farol. A Mineira estava muito chateada porque haviam lhe tirado o bebê e levado para um orfanato, já que ela não era a mãe e o pai da criança não queria reconhecê-la. Disse que quando a mãe da criança -  uma adolescente de quinze anos -, telefona para saber notícias chora muito. Ela lamentou não poder fazer nada, nem visitar a criança ela pode, para isso precisaria de uma autorização especial do Conselho Tutelar. Eu fiquei ali ouvindo aquela história e pensando... Duas mães querendo muito uma criança... Na hora eu me lembrei da história de uma das crianças da Creche Asas Brancas que visito regularmente e contei para a Mineira. É sobre uma linda menina, uma boneca, que chegou lá com menos de dois anos. Teve a guarda retirada da mãe, embora a mãe tenha outros filhos, sendo que um menino mais velho que a menina também está nessa creche, na unidade masculina. O que me espanta nessa história e que contei para a Mineira é que a mãe sempre vai visitar o menino, mas nunca mais veio ver a menina. Hoje ela deve estar com uns quatro anos, quando a mãe foi questionada sobre essa sua postura diferenciada, alegou que não gosta da menina. Incrível, não? Como pode? Que diferença entre essa mãe e a Mineira, não? Que lição!!!

As crianças passavam correndo de um lado ao outro, os presentes iam sendo entregues, nosso pessoal revezava-se, aos poucos o ritmo foi diminuindo, a Mônica conversava com a Mineira, até a nossa fotografa que clicava a todos deu uma parada e teve seu momento de dialogar. Um pouco mais afastada da porta, a Raquelzinha conversava com uma das moças grávidas de uma forma que, vendo de longe, pareciam duas comadres que se conheciam de muito tempo. Mais tarde ela me resumiu esse diálogo – procuro um adjetivo para caracterizá-lo para vocês, mas só ela descrevendo para que percebam a riqueza humana que ele contém: Shirley, a menina que na semana anterior recebera lições de matemática do Eduardo, puxou-me de lado para fotografá-la com uma amiga. De pronto, achei que era uma coleguinha da mesma idade infantil, porém foi com uma moça grávida que a pequena sorridente queria ser fotografada. Após ligeira pose, Shirley saiu novamente para brincar e comecei a conversar com essa moça, da qual, até o momento, não me lembro o nome, mas, ainda que permanecendo no anonimato, lembro-me perfeitamente o tom de voz desolado com o qual me contou sua experiência. Jovem, provavelmente com menos de vinte anos, esperava o nascimento do quarto bebê. Disse-me que no início pensara em abortar, já que a situação difícil não lhe dá condições de manter os três filhos, ela e o marido, mas aceitando conselho da tia decidiu deixar a gravidez seguir adiante. Quando perguntei em que hospital pretende ter o bebê, não recebi resposta, apenas contou-me que cada um deles nasceu num local, dependia sempre onde ela estava, quem a socorria levava ao local mais conveniente. Depois acabou dizendo que gostaria que fosse no Hospital Beneficência Portuguesa, porque já teve referencias boas de lá – quem tem filho ali, não sente dor, disse. O último parto, há menos de dois anos, aconteceu depois que visitou o namorado no presídio, a bolsa rompeu e foi levada para a Santa Casa. Já escolhera os nomes, se for menina será Josiane em homenagem a mãe já desencarnada e se for menino será Wesley em homenagem ao cunhado assassinado há alguns meses. Ao acariciar a barriga dela, senti a vibração de uma vida e percebi que o milagre cerca-nos em todas as circunstâncias! Fiquei emocionada ao perguntar aonde mora, é um local bem distante de onde estamos. Quilômetros caminhados para desfrutar a companhia da Mineira e de sua família. Pensei nos meus amigos e nas facilidades que temos de usufruir da companhia alheia – telefone, carro, enfim, e que muitas vezes negligencio, quantas vezes utilizo esses recursos somente para pedir algo... meditei nesse exemplo. Percebi a importância de ouvi-la, simplesmente ouvi-la, sem críticas, sem censuras, apenas aceitando  sua história, apenas deixando que ela percebesse que naquele momento estava com ela, me importava com o que ela queria contar. Foi delicioso tirar fotos, capturar o brilho no olhar daquelas crianças e registrar numa fotografia, tornar àquele momento imortal prendendo-o num pedaço de papel... mas essa história, essa história esta registrada na memória do meu coração!

O tempo correu. Novas crianças continuaram a chegar, claro que tivemos que recorrer aos brinquedos extras que haviam ficado nos porta-malas dos carros.

– Tia, cheguei agora, não ganhei nada.

– Tio, não tem meu nome na lista, será que não sobrou mais nada, tio?

Com variações, a última meia hora testemunhou vários diálogos desses. Para que tenham uma idéia da superação do número inicial de crianças, no dia seguinte, ao passar a lista da prancheta a limpo, levantamos setenta nomes diferentes, mais de três vezes o número inicialmente previsto. Fomos salvos pelos “presentes extras”, que Deus os tenha. Quando por volta das vinte e duas horas e trinta minutos começamos a nos despedir não havia mais quase nenhum presente nos carros.

Pouco antes da oração final a Mônica e o Álvaro conversaram com o Adilson, marido da Mineira, sobre as bonecas que ele aprendeu a fazer. Ela ouvira eu lhe perguntar se ele poderia fazer mais dessas bonecas, a que a Gisele levara na semana anterior fizera enorme sucesso em cima de sua mesa de trabalho. Pela resposta meio sem graça dele perceberam que alguma coisa o perturbava e foram indagar quando conseguiram se aproximar. Perguntaram-lhe como fazia para arrumar material para confeccioná-las, ouvindo que ele não tinha mais material, as que ele tinha prontas foram feitas na prisão onde estava e agora, desempregado, não tinha dinheiro para comprar material. Aproveitaram a brecha e pediram-lhe que lhes informasse que materiais usava, ficando sabendo que para cada boneca ele precisa de quatro a cinco novelos de lã, linha de nylon n.36 e a cabeça de plástico da boneca. Prometeram tentar arrumar o necessário para que fizesse mais dessas graciosas bonecas.

Preparávamos para nos organizar em roda para a oração de encerramento e a despedida quando o telefone celular da Solange toca, era o Edu, mais uma vez. Lembrara-se de um recado a ser dado a Mineira, mas coloquei é o Sávio para falar com ele ao telefone. Brinquei mais tarde, foi o ausente mais presente que já vira.

Uma roda de mãos dadas tomou conta da pequena rua, pedi a Mineira que fizesse a oração. Espalhados pela roda, todos nós, a família da Mineira e mais algumas outras pessoas, um cachorro cego a pular em cima da Raquel, Sávio berrando preocupado com o gato embaixo do carro, Shirley de novo querendo trocar de lugar, muitos sorrisos. Iniciou-se um sentido Pai-Nosso acompanhado por todos, ainda agradecemos a ela por nos receber em sua casa com a simpatia e a simplicidade natural que possui.

Dois dias depois soubemos pelo senhor Roberto que as obras na casa da Mineira já começaram. A todos nós resta a reflexão sobre os caminhos que nos levaram até eles. Quem está aprendendo o quê, e com quem?

abraços

Maurício

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