Depoimentos de quem já participou

Grupo Beija Flor


Crônica de uma noite na rua

- o caminho errado -

 26 de outubro de 2003  

– O Edu pegou a saída errada!

Estava no carro do Sérgio seguindo o do Edu, quando ele errou o caminho combinado anteriormente por nós e tivemos todos que ir atrás dele, já que o dele era o primeiro carro. Em dúvida ele reduziu a velocidade e nós o ultrapassamos e seguimos até uma pequena praça na região do Glicério, onde estacionamos. Inicialmente paramos apenas para conversarmos, re-acertarmos o roteiro e para entregar alguns lanches para as pessoas que estavam no canteiro central dessa praça.

Como fazemos regularmente todo mês estávamos saindo à rua para cumprir determinada atividade social a que nos propomos, distribuir alguns kits de lanche para moradores de rua, doando um pouco do que recebemos e tentando interagir com essa realidade social tão diferente da nossa. Nessa noite saímos apenas em três carros, nosso grupo era composto de nove pessoas. Havíamos nos encontrado por volta de 8 horas da noite no Centro Espírita Auta de Souza, na Vila Mariana, colocamos os quase 500 sanduíches de mortadela que trouxemos em pequenas sacolinhas plásticas, acrescentamos uma banana em cada uma e alguns biscoitos e nos preparamos para sair. Depois de conversarmos sobre a programação das nossas atividades sociais no final do ano, nos dirigimos às ruas do centro da cidade de São Paulo.

Poucos instantes depois que estacionamos Graciane já estava oferecendo o lanche para as pessoas que estavam na praça, caminhei alguns passos para o meio dessa praça e avistei a poucos mais de cem metros de distância um grande grupo de pessoas albergadas por um muro. Comecei a fazer sinal para meus amigos, apontei as pessoas e logo o Paulo, Fred, Solange, Lucia, Sérgio e a Patrícia se dirigiam para lá. Protegidas por paredes de papelão e pelo muro do viaduto, várias famílias com crianças pequenas foram atendidas, nossas garrafinhas de leite quase acabaram na primeira parada que fizemos.

Fomos andando pela trilha de pessoas na calçada até que, atravessando a rua, o Sérgio e a Solange encontraram três pessoas. Um casal tentava ajudar um amigo deles machucado. Edson, o nome do amigo, caíra e estava com um enorme corte na parte inferior do queixo, sangrava muito. Tentamos chamar o resgate (192) para que ele fosse levado para curativos, depois de várias tentativas o Sérgio conseguiu contatá-los. Entretanto, o amigo do Edson nos disse que já os chamara duas horas antes.

Não consegui conter um comentário sarcástico.

– Se fosse muito sério ele já teria morrido.

Resolvemos esperar um pouco conversando com ele, ao passo que o Sérgio e a Solange foram ao posto do Corpo de Bombeiros situado a dois quarteirões dali. Logo o Paulo engatou uma conversa com ele, descobrimos que ele é mineiro, está em São Paulo há nove meses, falaram de futebol, de Cruzeiro e Atlético, o tempo passou. De resgate? Nada!

Quase quarto de hora depois eles voltaram do Corpo dos Bombeiros e nos contaram que encontraram um carro da polícia que estava auxiliando em um atropelamento que acontecera um quarteirão atrás de onde nós estávamos, o policial prontificou-se a enviar um viatura para levar o Edson ao hospital. Realmente, cinco minutos depois surgiu uma viatura policial que acabou por colocá-lo dentro do carro e partiu dirigindo-se a um  hospital perto.

Voltamos à pracinha onde os carros estavam estacionados e ainda ouvimos o resto do diálogo que o sr. Horácio travava com o Edu e a Graciane. Morador de rua, contou-nos ela mais tarde, o sr. Horácio abriu seu passado a ela de forma confidente. Era segurança de firma, certo dia o local onde trabalhava sofreu tentativa de roubo, ele reagiu e feriu mortalmente alguns dos atacantes. Segundo seu relato, apesar da sua intenção de defesa, acabou sendo acusado de reação por demais violenta e condenado a passar alguns anos na cadeia. Ao sair, não quis mais procurar a sua família e passou a viver na rua.

Antes de partirmos com os carros, enquanto contávamos resumidamente o que ocorrera para o Edu que ficara no carro, tivemos que ouvir:

– Estão vendo, se eu não tivesse errado o caminho nós não teríamos nem ajudado o cara ferido e nem visto essas dezenas de pessoas nesse muro.

Nos abstivemos de responder e seguimos adiante para outras paragens.

Já era quase onze horas da noite quando encostamos ao lado da nossa amiga, a Mineira. Assim que estacionamos tanto ela quanto seu marido Adilson já apareceram para nos cumprimentarem.

– Ah, que pena, as crianças esperaram até agora vocês chegarem, mas não agüentaram e dormiram a pouco – disse a Mineira.

Adilson logo nos abriu a casa e com enorme sorriso foi nos mostrar a reforma que o nosso amigo Roberto, da Grua, está realizando em sua casa para que possa ter banheiro com vaso sanitário e chuveiro funcionando perfeitamente. Adilson fazia questão de mostrar a cada um de nós o estado em que está a reforma, os azulejos do banheiro, não parava de agradecer.

– Obrigado a todos vocês..., ah, o seu Roberto, ele é ...

Procurando adjetivos que não encontra com facilidade, mostrou no sorriso e nos gestos o quanto estava agradecido ao nosso amigo.

Paralelamente a Solange confirmava com a Mineira os nomes das moças grávidas que havia levantado da última vez que estivemos lá. Na noite de ontem, 25 de outubro, já estávamos levando um enxoval para uma das moças. Deixamos este enxoval para que a Mineira entregasse para a Josiane, a moça que estava grávida de oito meses. Todos a chamam de Maura, tem 24 anos e já a conhecíamos de outras visitas anteriores. É muito simpática, mora ali perto, na rua Dona Ana Nery, tem mais dois filhos que não moram com ela, ficam com a sua família, realçara que resolveu deixá-los lá porque a família tem melhores condições de criá-los do que ela. Soubemos ontem que seu filho já nasceu, é um menino.

A Mineira nos contou também que a moça grávida de dois meses que relatamos em crônica anterior que a filha sumira com uma conhecida da mãe, conseguiu reaver a filha. A mulher que desaparecera com sua filha a trouxe de volta, mas por causa do ocorrido o pai das crianças os levou embora da região.

Infelizmente também soubemos que na noite anterior um carro desgovernado batera em uma das pilastras do viaduto embaixo do qual moram muitas pessoas, ao lado da casa da Mineira. Uma das moças grávida, a Márcia, 21 anos, moradora da região há aproximadamente três meses e grávida de dois, foi atingida no acidente. A Mineira e seu marido nos contaram que eles mesmos os tiraram debaixo de muita madeira depois do acidente. O marido dela estava machucado, sangrando e ela gritava de dor quando a ambulância veio para levá-la, berrava que não queria perder o bebê. Até a noite do dia seguinte nenhum deles recebera qualquer informação sobre o estado de saúde dos dois.

Levamos também roupas para a Cristiane. Ela nos pedira quando passamos na nossa última visita. Essa moça cuida de seis crianças com idade entre cinco meses e doze anos. Mora perto da Mineira e nos pediu que da próxima vez fôssemos visitar a sua casa, disse que as condições de habitação estão terríveis.

Nossa relação de grávidas ainda contém os nomes da Sheila de Souza, filha da Mineira, de 16 anos, e que está grávida de seis meses; a Valéria da Silva, 31 anos, grávida de cinco meses, o marido foi embora, ainda tem outros cinco filhos com idades entre quatro e dezesseis anos. Ainda há a Tia, todos a chamam assim, inclusive a Mineira, embora ela não seja tia de ninguém, chama-se Maria Lucia dos Reis. Ela nos pediu para entrarmos em contato com a creche Divina Providencia, localizada n rua da Mooca, e pedir que aceitem os dois netos dela –filhos de sua filha que está presa –, para que ela possa trabalhar na frente de trabalho. Segundo a ela, a freira não a atende de jeito nenhum, por mais que ela fique na fila – a Mineira nos contou que a filha, mesmo quando não estava presa, nunca cuidou das crianças, que sempre ficaram com essa avó, chamada de Tia por todos.

Prosseguimos com a distribuição dos lanches, fomos até a Praça da Sé, Pátio do Colégio, rua São Bento, rua Boa Vista, Líbero Badaró, Largo do Patriarca, 24 de março e avenida São João. Começara a garoar, apesar de certo desconforto, a água era bem-vinda, há muitos anos a cidade não enfrenta uma seca como a desse ano.

Por outro lado, a seca não justifica a recusa de um copo de água simples, de torneira mesmo. Na região da Praça da Sé, enquanto distribuíamos os lanches ouvíamos várias pessoas que dormem nos contornos da praça nos relatarem que os donos dos bares já estão se recusando a lhes fornecer um copo de água, mesmo que da torneira, alegando a falta de água, a temporada de seca. Segundo o ponto de vista de quem lhes escreve a reação dos donos dos bares é desmedida, o humanitário ato de estender um copo de água, principalmente porque não é nem potável, não pode ser abandonado. Na milenar história da humanidade a oferta de um copo de água sempre foi ação benemérita, digna, de todo e qualquer cidadão a todo e qualquer cidadão.

Nos cantos escuros, nos cimos de algumas pracinhas, nos contornos dos muros, enquanto tivemos algo a fornecer permanecemos na rua, até a madrugada dobrar, a meia-noite anunciar um novo dia e os nossos lanches se acabarem.

abraços

Maurício

Voltar