Depoimentos de quem já participou

Grupo Beija Flor


História da Mineira 9

- pai, agora não preciso mais viajar para te ver, você está aqui -

 

– Adilson, que bom te ver, que bom que você está aqui!

Essa minha alegre reação ao vê-lo foi um contraste com a tensão com que o deixamos na semana anterior.

Último dia do mês de novembro de 2003, caminhava da estação Sé do Metrô até a casa da Mineira lembrando tanto da semana anterior como dos últimos quatro meses. A vida da Mineira e sua família transformou-se de agosto para cá, talvez “transformar-se” não seja a palavra correta, mas, digamos, recebeu uma série de incentivos e surpresas positivas que a levaram a aproximar-se de um certo equilíbrio. Coroando isso, há duas semanas atrás o nosso amigo Sr. Roberto, da Grua, terminara o trabalho que se propusera de maneira tão gentil de fazer o banheiro e acabou por reformar a casa deles. Além das instalações hidráulicas, banheiro e esgoto foram instalados, a casa foi pintada e passou por outras pequenas reformas e ampliações.

Passando pela Praça da Sé e entrando na avenida Liberdade recordei-me da surpresa que o Paulo, nosso amigo advogado, provocou ao encontrar-nos no domingo anterior. Reuníamo-nos no Centro Espírita Auta de Souza para a entrega regular de lanches que fazemos pelas ruas do centro da cidade no quarto domingo de cada mês. A maior parte do grupo estava no salão montando os kits de sanduíche de mortadela, biscoito e banana que levaríamos mais tarde, eu, por outro lado, encontrava-me sentado no terraço de entrada do Centro Auta de Souza. Pensava na vida, melancolicamente discutia com os botões inexistentes da camiseta sobre a vida em geral e o mundo como um todo, confesso que estava um tanto quanto desanimado naquele domingo, razões umbilicais. Quando o Paulo e a Gisele chegaram, ao subirem a escada de acesso já foram logo anunciando que tinham novidades sobre o caso do Adilson e não eram boas.

Já relatamos em textos anteriores que o Adilson tem uma pendência jurídica a ser resolvida. Réu de duas condenações em 1998, esteve preso por cinco anos, mas uma de suas condenações ainda não foi extinta. Paulo chegava com a informação de que deveria estar sendo expedido um mandato de prisão relativo a esta segunda condenação já na semana que começaria na segunda-feira próxima.

Paulo detalhou um pouco dos meandros jurídicos da questão, realçando que a área criminal não é sua especialidade, mas um colega do seu escritório, Luís, dedicado a esta área se dispusera a ajudar. Disse-nos que a Defensoria Pública não trabalhara bem no caso, perdera o prazo para o recurso possível, além de ter deixado de utilizar argumentos jurídicos que poderiam beneficiar ao Adilson.

A notícia foi um balde de água-fria em todos nós, a interrogação sobre o que fazer provocou reações as mais diversas. Paulo nos disse que o Adilson tinha duas alternativas, as quais ele pretendia apresentar-lhe mais tarde ao passarmos na sua casa. Poderia esperar em casa e caso fosse preso entrar com recurso ou sair de casa. A opção pela última alternativa o tornaria um foragido, porém, como Paulo lembrou, há milhares de mandatos de prisão não-cumpridos no Estado de São Paulo e após oito anos a pena prescreveria; segundo ele, a Polícia passaria duas ou três vezes no seu endereço, não o encontrando deixaria de lado o mandato de prisão, o qual entraria na pilha dos milhares não-cumpridos.

Minha primeira reação foi pedir para que a Solange, coordenadora do grupo, deixasse a casa da Mineira como última escala no roteiro do trabalho. Disse ao Paulo, à Gisele, ao Eduardo e a ela que achava que deveríamos conversar com ele com tempo, apresentar-lhe as duas alternativas e deixasse que ele decidisse, coloquei que deveríamos respeitar o princípio do livre-arbítrio e deixar a decisão para ele, afinal a responsabilidade e as conseqüências da escolha feita seriam sempre dele.

Paulo concordou em parte comigo, aceitava que a escolha seria dele, mas me disse que pretendia falar ao Adilson qual das opções considerava a melhor. Retruquei que nesse caso estaria influenciando-o, mas meu amigo insistiu que tinha que dar sua opinião. Antes ainda que lhe perguntasse qual era afinal a opção que aconselharia, ouvi o Edu falar para a Solange:

– Mas isso não é problema nosso! Nós já ajudamos muito sua família!

Ele deu sua opinião e voltou ao salão ao mesmo tempo em que, no terraço, Paulo expressava sua preferência pela segunda alternativa. Para meu amigo advogado bastava o Adilson ficar dois ou três meses fora de casa, depois poderia voltar e mantendo uma rotina de trabalho-casa, esperar a pena prescrever depois de transcorridos oito anos.

Confesso a todos vocês que fiquei bem nervoso, não concordava com as opiniões dos meus amigos, embora soubesse que precisava me conter e respeitá-los. Não foi fácil, considerando-me ainda um espírito de muito pouca evolução tive dificuldade em manter um equilíbrio emocional mínimo. Logo retrucava ao Paulo que fugir é uma opção muito delicada e que gostaria que ele apenas apresentasse as opções ao Adilson; passaríamos as próximas duas horas debatendo a questão. Durante o resto da noite, enquanto procurava esfriar a cabeça, expus algumas vezes a minha discordância em relação a sentença do Edu. Concordava com o princípio do que o Edu dissera, mas discordava com a conclusão. Lembro-me falando para a Solange:

– O Edu tem razão em uma coisa, sem dúvida não é problema nosso. Entretanto, se formos por este lado, nada relativo aquela família, relativo aos moradores de rua ou mesmo ao pessoal de Francisco Morato, por exemplo, é problema nosso. Nós fomos ajudar a Mineira e suas crianças porque quisemos, porque achamos que podíamos e como opção e complemento ao trabalho regular de entrega de lanche. Todo o trabalho social fazemos porque queremos, não porque é problema nosso ou porque deixa de ser problema nosso. Se formos por este viés de pensamento nenhum problema social é problema nosso, são opções nossas.

Ainda preciso aprender a compreender melhor as opiniões alheias!

Iniciamos e realizamos a entrega de lanches. O trabalho, segundo meu ponto de vista, foi morno, quase apático. Passamos pela região do Teatro Municipal, cobrimos do Vale do Anhangabaú até a rua Sete de Abril, alcançamos a Praça Patriarca e o Largo São Francisco, chegamos a Praça da Sé. Transcorreu tudo rápido, quase indolor.

Digno de nota recordo pequeno caso que a Gisele, contente, correu a me contar enquanto descíamos a rua Marconi. Ao se aproximar de um senhor deitado na lateral do calçadão para lhe entregar um kit de lanche, este a chamou e pediu-lhe um favor:

– Você podia ler para mim um papel que eu ganhei, eu não sei ler.

Ela prontamente se prontificou a tanto, ficando surpresa quando ele lhe estendeu pequena mensagem espírita contendo texto de Emmanuel, o conhecido amigo espiritual de Chico Xavier.

Já era meia-noite quando em cinco pessoas nos dirigimos a casa da Mineira. Cansados e possivelmente com sono Edu e o resto do grupo já havia ido embora para suas casas, Paulo, Solange, Gisele, Graciane e eu chegamos ao Glicério esperando que o Adilson ainda estivesse acordado, inicialmente não pretendíamos chegar lá tão tarde.

O casal estava acordado e gentilmente nos convidou a entrar, só lamentavam que as crianças já estivessem dormindo. Durante o trajeto conversara com o Paulo sobre como abordaríamos a questão, se o chamaríamos a parte ou não, interrogamo-nos sobre qual seria sua reação várias vezes. Em alguns minutos iniciei o relato na frente de todos com a ajuda do Paulo. Embora atestasse que estava calmo, Adilson começou a argumentar conosco. Levantando, sentando, voltando a levantar e a sentar em outro lugar, reiterava que estava calmo.

– Tá tudo bem, tá tudo bem, eu tô calmo!

Gisele, colocando ternura na voz, várias vezes pediu-lhe que pensasse bem no que ia fazer, Solange, sentada ao lado, conversava com a Mineira que nos observava com o rosto entristecido. A tensão tomou conta da sala.

– As duas penas somadas davam seis anos, fiquei preso por cinco anos e alguns meses, sempre tive bom comportamento, compreendeu, quer dizer, já cumpri quase tudo, o que é que eles querem, se for para cumprir mais três anos não vai dar não!

Este parágrafo acima, com algumas variações, ele repetiu muitas vezes. Por outro lado, Paulo foi obrigado a reiteradas vezes tentar explicar-lhe juridicamente a questão, realçava que seu amigo criminalista iria ajudar, mas que no momento atual estava difícil de impedir a expedição do mandato de prisão.

Afirmei-lhe que caso ele fosse preso, continuaríamos a ajudar a Mineira e as crianças, mas ele não se conformava.

– Eu vou passar o Natal em casa, prometi que dessa vez ia passar o Natal em casa.

A conversa continuou em cima desse eixo, Paulo ainda fumou um cigarro enquanto dialogava com o Adilson na calçada e as meninas conversavam com a Mineira na sala. Pouco mais de meia hora depois fomos embora pedindo que nos avisassem por telefone sobre qualquer novidade que fosse, Paulo ainda lhe disse que voltaria antes com seu amigo Luis.

Na terça-feira, recebemos e-mail do Paulo nos informando que passara na Mineira com o Luis, seu amigo advogado criminalista, e tiveram uma boa conversa com o Adilson. Ele nos disse que seu amigo é especialista nessa área é prometeu ajudar, estudaria com afinco o que poderia fazer a curto prazo.

 

***

 

Sim, lembrava de tudo isso no último dia de novembro ao me aproximar caminhando da casa deles. Ainda a trinta passos vi a criançada jogando bola naquele arremedo de rua, o primeiro a me ver foi o Alex.

– Tiiiiiiiiio, ooooi, tio!

Jogou-se em cima de mim, com um braço segurava meu pescoço enquanto eu, com meu único braço livre, segurava-o e girava até quase ficar tonto. Logo o Alexandre e a Shirley também se aproximaram, em um canto a  Shirleine nos observava. Beijei a Shirley, a pequena sorridente, e pedi que chamasse a Mineira.

– Ela não está, foi na Igreja.

– E o Adilson?

– Tá lá dentro.

– Chame ele para mim, então.

– Tá. Mas, tio, cadê a tia?

– Ela não podia vir hoje.

Foi a primeira dos vários amiguinhos da Gisele que perguntaram por ela, como sempre. Nesse domingo ela e os outros amigos não puderam acompanhar-nos, eu fui de metrô apenas acompanhado da Solange. Em poucos minutos o Adilson apareceu na porta.

– Adilson, que bom te ver, que bom você está aqui!

A razão principal dessa visita era levar as outras bonecas que ele está acabando de fazer para tentar vender no Natal, a Mônica se prontificara a nos ajudar colocando-as na sua loja. Na semana anterior já levara dez unidades e ele combinara comigo que acabaria as outras esta semana e eu passaria para pegá-las nesse último domingo de novembro.

Após manifestar minha alegria por vê-lo por aqui, recordei-lhe a razão da minha visita. Adilson confessou que não as terminara, mas me contou com um enorme sorriso que conseguira emprego na marcenaria onde trabalhara anos antes.

– Não é um emprego garantido, mas até o Natal o dono disse que eu posso ficar. Chego lá 8 horas da manhã e fico o dia inteiro. Ainda por cima me garantiu que fora do trabalho regular que tenho que fazer, se aparecer algum extra ele me deixou fazer e pegar o dinheiro como complemento de salário todo para mim. Foi por isso que não consegui acabar as bonecas, fiquei o dia inteiro por lá. Mas vamos entrando, vamos entrando para conversar um pouco, a Mineira foi na Igreja e já deve estar voltando.

Em poucos minutos eu me encontrava apoiado na janela da sala enquanto ele se sentava em volta da mesa e a Solange no pequeno sofá da sala/cozinha. Entabulamos uma conversa que acabou por se estender por quase uma hora.

Contou-nos que o Paulo passara lá na terça-feira, repetiu o que já dissera no último domingo sobre a extensão de tempo em que ficou preso, o que, argumentava, seria suficiente para as duas penas. Contou-nos um pouco sobre a vida na prisão em Avaré, por sua habilidade e interesse quando esteve recluso trabalhou em vários serviços para ajudar a contar tempo de pena, salientava que jamais se metera em nenhuma briga ou gangue.

– Lá dentro tinha o pessoal do PCC, mas a maioria era como eu, neutros, nós não nos metíamos com eles e eles não se metiam com a gente. Eles normalmente convidam o pessoal a ingressar no bando, mas não forçam nada, é só não entrar em atrito com eles.

A todo momento uma das crianças entrava, fazia uma graça, pegava uma água e voltava a brincar lá fora. Quando o Alex, o pequeno de cinco anos entrou, Adilson nos contou que já conseguiram a cópia autenticada da sua certidão de nascimento, o que esperavam para levá-lo ao hospital e prosseguir no tratamento. Ele sofreu um acidente muito sério aos dois anos, o cérebro inchou, ficou vários meses internado, a Mineira tem reparado que ele apresenta problemas de equilíbrio, cai com facilidade, deverá ser levado a um pediatra imediatamente.

A Solange comentou com o Adilson que esteve na FEBEM com um amigo, o Carlos, que desenvolve um trabalho com os menores internos e com os monitores. Isso foi uma oportunidade para que comentássemos sobre a importância das crianças estarem todas na escola.

– A rua você bem sabe como é, Adilson ­– fechando a boca e sacudindo a cabeça ele demonstrou as lembranças tristes que tinha.

– A molecada começa a andar com um e outro, experimenta um baseado, então não tem dinheiro, aparece a oportunidade de fazer um lance aqui, outro ali, no começo ninguém acha que vai rodar, imagine, mas você bem sabe que um dia a casa cai, todos rodam um dia, até o Fernandinho Beira-Mar acabou rodando – apesar do tema delicado e dolorido para ele por causa do seu passado recente, é importante conversarmos sobre isso.

Ele me ouvia quieto, concordando com a cabeça.

– Consegui uma vaga para o Sidney lá no Corpo de Bombeiros.

– Corpo de Bombeiros? Como assim?

– É, depois da escola ele fica no Centro Recreativo deles, passa a tarde lá.

– Em que série ele está?

– Ele tá na quarta série.

Lembrei que a Mineira me contara que quando ele era menor morara um tempo na rua com o pai natural dele.

– Os menores ficam na creche de manhã e depois vão para o CCA da prefeitura. Ano que vem o Alexandre vai para a escola, já está com seis anos. Na próxima semana a Mineira deve ir a uma escola aqui perto tentar vaga.

– Que bom, Adilson, estudar é muito importante. Veja no caso da FEBEM, os meninos saem de lá mas se a família é desestruturada muitas vezes eles não voltam para a escola, não arrumam emprego, pronto, logo estão na rua de novo, por isso o problema da reincidência ser tão sério, tanto com os menores de idade como com os adultos. Hoje em dia o apoio da família e a integração são fundamentais. Além disso é comum encontrarmos famílias formadas só pela mãe e pelos filhos, como estava a Mineira até você voltar recentemente, isso torna ainda mais difícil as mães evitarem que os filhos passem a ficar direto na rua.

– É mesmo, é mesmo.

Silenciamos um pouco até que ele voltou a afirmar.

– Mas essa semana eu acabo as bonecas.

– Tá certo, eu passo semana que vem.

Levantamos para ir embora, ainda pensava sobre minhas dúvidas, será que ele estará em casa no Natal? Como se soubesse o que eu pensava, ele mesmo completou.

– Eu vou passar o Natal em casa, este ano eu vou. Às vezes eu nem acredito que estou em casa. O Sávio outro dia chegou perto de mim, me abraçou e disse: – Pai, agora não preciso mais viajar para te ver, você está aqui.

– Ele tinha que ir até Avaré para te ver.

– É, mas nem sempre conseguia passagem para a Mineira ir lá com ele. Por isso que digo, se tiver que cumprir toda a pena de novo, ah, não sei não, mesmo a Mineira e a Shirley não vão agüentar. Qualquer coisa fico lá na marcenaria o dia inteiro, nem volto para casa.

Na calçada encontramos a Mineira chegando, cumprimentou-nos e nos reteve mais um tempo conversando. Contou-nos que uma das mulheres que estão grávidas e que receberam o enxoval completo que havíamos deixado com a Mineira para que ela entregasse, chorou muito ao recebê-lo, não tinha nada para o bebê que está nascer.

As crianças nos cercaram enquanto conversávamos,  Shirleine e o Alex brincavam comigo, os outros meninos jogavam bola em um campo imaginário, beijamos a todos e fomos ensaiando partir.

– Eu vou acabar as bonecas esta semana, vou trabalhar a noite. Este ano tenho certeza que vou passar o Natal em casa – assegurava-me o Adilson mais uma vez.

– A festa de Natal para a criançada está confirmada. 23 de dezembro estaremos todos aqui, já estamos separando os presentes para cerca de 100 crianças, virão amigos nossos vestidos de Papai-Noel, vamos fazer uma bagunça.

A Mineira riu espontânea, estava contente com o emprego do Adilson. Vendo todas as crianças jogando na rua, o nosso casal amigo cheio de esperanças, nos despedimos e caminhamos para a estação do metrô na expectativa de que esse quadro de fé não se altere.

abraços

Maurício

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